Texto apresentado no capítulo XIV do livro Conceitos de Física Quântica, volume I, escrito
por Osvaldo Pessoa Jr, Livraria da Física.
Uma síntese, feita pelo mesmo autor, pode ser lida na página destino deste link.
PARTE 1
Realismo em Geral
Você
é um realista? Distingamos primeiramente um sentido “ontológico” (relativo às
essências das coisas, ao “ser” das coisas) e um sentido “epistemológico”
(relativo ao conhecimento). O realismo ontológico é a tese de que
existe uma realidade lá fora que é independente de nossa mente (ou de qualquer
mente), de nossa observação. A
negação desta tese é chamada de idealismo, que pode
assumir várias formas, conforme veremos. O realismo epistemológico afirma que é possível conhecer esta
realidade, ou seja, que nossa teoria científica também se aplica para a
realidade não observada. [94] Exploraremos inicialmente essas teses no nível do
conhecimento individual, para depois analisarmos a forma que o realismo
epistemológico assume quando consideramos o conhecimento científico – o chamado
de realismo científico.
Para
começar, devemos salientar que o termo “realismo” tem mudado de significado ao
longo da história. Na filosofia medieval, o realismo era a tese de que os universais (“a
árvore”, “a cadeira”, “o homem”) existem antes das coisas particulares, tese
esta que estava associada à filosofia de Platão. A esta
posição se opunha o nominalismo, segundo o qual os universais são meros nomes,
e a realidade só se refere ao particular do mundo físico atual (Guilherme de Occam, século XIV).
No
século XIX o termo “realismo” surgiu principalmente nas artes como reação ao romantismo. Este último
apresentava uma atitude holística, orgânica, intuitiva, idealizadora, que em
ciência influenciou a Naturphilosophie (início do século: Goethe, Schelling, Oersted).
A reação realista nas artes realçava o cotidiano e o social, tendendo a ser
politicamente mais progressista.
Na
ciência, o realismo estava associado ao mecanicismo e ao atomismo, com uma
valorização da quantificação e do método hipotético-dedutivo [95]. Ele se
contrapunha ao positivismo, originado
com A. Comte e
defendido por E. Mach e
energeticistas como W. Ostwald.
Para o positivismo, qualquer especulação sobre mecanismos
ocultos deve ser evitado. Só tem sentido tecer afirmações sobre o que é observável,
verificável. Uma sentença “sem sentido” é aquela para a qual não há um método
para verificar se ela é verdadeira ou falsa. Por exemplo, a frase “a realidade física existiria mesmo que não existisse nenhum observador”
seria sem sentido. Para o realista, porém, tal frase não só tem sentido como é
verdadeira.
No
século XX, a questão de como fundamentar o uso da matemática na ciência levou
ao “positivismo lógico” (Viena: M. Schlick, R. Carnap) e “empirismo
lógico” (Berlim: H. Reichenbach). Formas abrandadas dessas correntes
tiveram bastante força até o início da década de 1960, na filosofia da ciência.
Na década de 50, iniciou-se uma reação contra o positivismo lógico,
centrando-se fogo especialmente no seu “empirismo”, tese de que as observações
são bases seguras para construir a ciência (K. Popper, W. Quine). Por um lado, autores “relativistas” (M. Polanyi, N. R. Hanson, P. Feyerabend, T. Kuhn) atacaram a ênfase excessiva na descrição lógica
da ciência, salientando que o conhecimento tem um componente intuitivo, e que
ele está sujeito às circunstâncias históricas e sociais. De outro lado, a
corrente do “realismo científico” (G. Maxwell, H. Putnam) foi elaborada, e tentaremos esboçá-la adiante.
Em
outros campos, fora da filosofia da ciência, o “positivismo” foi também
bastante atacado, tendo-se tornado até um termo depreciativo. Este sentido
negativo parece ter surgido com as teorias positivistas em Ciências Humanas
(inclusive na Educação), como o “behaviorismo” em
Psicologia, que simplifica ao máximo a representação que se tem do ser humano,
focalizando seu estudo apenas na relação entre estímulo e resposta
(os dados “positivos”). [96] Tal abordagem pode ser usada para se justificar a
manipulação e dominação de homens por outros homens, tendo sido bastante
criticada, como por exemplo pela Escola de Frankfurt (T. Adorno, J. Habermas,
etc). Salientemos então o seguinte: no presente estudo, iremos nos concentrar
na discussão entre formas de realismo
e antirrealismo nas Ciências Naturais, onde
“positivismo” não é necessariamente um termo depreciativo.
Os
Problemas do Conhecimento
Um
ponto crucial para entender as diferentes formas do antirrealismo, ou o que
significam os diferentes “ismos” filosóficos, é considerar o tipo de pergunta
que cada um responde. Adaptaremos aqui as análises feitas pelo filósofo alemão Johannes Hessen e pelo filosofo da ciência
finlandês Ilkka Niiniluoto [97].
Consideremos
primeiramente o problema ontológico da existência de uma realidade independente
do sujeito ou de uma mente. Já mencionamos que o realismo
ontológico afirma a existência
desta realidade; a negação desta tese recairia em um “idealismo ontológico”, que é mais conhecido como idealismo
subjetivista. A forma mais radical desta é o “solpsismo”, segundo o qual a realidade se resume ao
conteúdo do meu pensamento: a realidade seria uma
espécie de sonho em minha mente. Uma forma menos radical é a doutrina do “esse est
percipi” (Berkeley, séc. XVIII), segundo a qual só existe aquilo que é percebido
por alguém. Berkeley termina por defender um idealismo objetivo,
porque a realidade externa existiria enquanto atividade mental de Deus. Tal idealismo é consistente com
o realismo ontológico. Vemos assim que o idealismo não surge apenas como
negação do realismo ontológico. Um idealismo epistemológico [98] (que negaria o realismo
epistemológico) defenderia a impossibilidade de se conhecer entidades
independentes de qualquer sujeito cognoscente.
Podemos
aceitar a existência de uma realidade exterior e colocar o problema
epistemológico que Hessen chama
de problema da “essência do conhecimento”:
é o objeto que determina o sujeito (realismo), ou é o sujeito que determina o
objeto do conhecimento (idealismo)? O idealismo transcendental daquele que é considerado o mais
importante filósofo moderno, o alemão Immanuel Kant (séc.
XVIII), adota uma posição intermediária: aceitar a existência de coisas-em-si (“número”), mas considera que a
existência só tem acesso às coisas-para-nós, os “fenômenos”.
Tais fenômenos, porém, seriam organizados pelo nosso aparelho perceptivo e
cognitivo, sendo assim em parte dependentes do sujeito (isso também é defendido
pelo idealismo conceitual de N.
Rescher, 1973). A causalidade, por exemplo, não existiria na realidade, mas
seria uma “categoria do entendimento”,
uma estrutura cognitiva sem a qual a própria compreensão do mundo seria
impossível.
No
outro extremo, um tipo importante de realismo é o materialismo, para o qual apenas
a matéria (e energia) existe ou é real: processos mentais seriam “epifenômenos” causados por processos materiais. O
marxismo, uma forma de materialismo, considera que as ações humanas são
determinadas pelos aspectos econômicos.
Consideremos
agora um outro problema epistemológico, que é o da “possibilidade do conhecimento”: pode o sujeito aprender o
objeto, pode ele conhecer verdades a respeito do mundo? Diferentes formas de
realismo afirmam que sim, enquanto que a negação desta tese se chama ceticismo. Dentre as atitudes
intermediárias podemos mencionar o pragmatismo (séc. XIX: C. S. Peirce, W. James), que leva em conta apenas as consequências
práticas das ideias, e que é uma forma de relativismo. O relativismo considera que nosso conhecimento e as
verdades dependem do contexto psicológico e social no qual nos encontramos.
Por
fim, consideremos o problema da “origem do conhecimento”:
é a razão ou é a experiência a fonte e a base do conhecimento humano? O empirismo considera que a única fonte de
conhecimento é a experiência. Conhecimento sobre o que existe não pode ser
obtido de maneira “a priori”. Os significados das ideias
seriam redutíveis aos dados da experiência (séc. XVII-XVIII: F. Bacon, J. Locke, D. Hume). O sensacionismo (em inglês: “sensationalism”) ou
“empirismo radical” enfatiza que as ideias são redutíveis às sensações (sense data), e no final do
séc. XIX esta posição foi defendida pelo “empirio-criticismo”
de Ernst Mach. A
posição de Mach também é considerada uma forma de idealismo subjetivista,
devido à tese de que “o mundo consiste apenas de sensações”. Uma forma mais
pragmática de empirismo é o fisicalismo,
para o qual os termos descritivos da linguagem se referem a objetos físicos
(não sensações) e suas propriedades, e são definidos “operacionalmente”. Para o
operacionismo (década de 1920: P. Bridgman), todo
conceito científico é sinônimo do conjunto de operações físicas associados ao
processo de medi-lo.
O
ponto de vista oposto ao empirismo é o racionalismo (ou melhor, intelectualismo), que
defende que o critério de verdade não é sensorial mas intelectual e dedutivo (R. Descartes, séc. XVII). Verdades básicas são evidentes
para a razão, e outras verdades são dedutíveis destas. A posição de Kant pode
ser considerada intermediária entre o empirismo e o racionalismo.
Para
finalizar, salientemos que o positivismo não envolve uma tese única, mas
consiste de quatro afirmações principais [98a]: (i) Descritivismo: só faz sentido atribuir realidade ao que
for possível descrever, observar. (ii) Demarcação: teses científicas são claramente distinguidas
de teses metafísicas e religiosas, por se basearem em “dados positivos” (são
verificáveis). (iii) Neutralidade: o conhecimento científico deve ser separado
de questões de aplicação de valores. (iv) Unidade da ciência:
todas as ciências têm um método único, baseado no empirismo e na indução.
OBS: Não deixe de ler a PARTE 2 deste texto.
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[94]
Na literatura mais recente de filosofia da física de língua inglesa, é costume
fazer uma distinção entre “realismo de entidade”, que seria sinônimo de
realismo ontológico, e “realismo de propriedade”, que atribui existência às
propriedades (autovalores associados a observáveis) mesmo antes de qualquer
medição.
[95] BRUSH, S. (1980): “The Chimerical Cat: Philosophy
of Quantum Mechanics in Historical Perspective”, Social
Studies of Science 10, 393-447.
[96]
Uma história da influência do positivismo de Mach tanto na Física quanto na
Psicologia é apresentada por HOLTON, G. (1993), “Ernst Mach and the Fortunes of
Positivism”, in Science and Anti-Science,
Harvard U. Press, Cambridge, pp. 1-55.
[97]
HESSEN, J. (1999), Teoria do Conhecimento, Martins
Fontes, São Paulo. Original:
Erkenntnistheorie, Dümmlers, Colônia, 1926. NIINILUOTO, I. (1987). “Varieties
of Realism”, in LAHTI, P. & MITTELSTAEDT, P. (orgs.), Symposium
on the Foundations of Modern Physics 1987, World Scientific,
Cingapura, pp459-83.
[98] MEHLBERG, H. (1980), “Philosophical
Interpretations of Quantum Physics”, in Mehlberg, Time,
Causality, and the Quantum Theory, vol. 2 (Boston Studies in the
Philosophy of Science 19), Reidel, Dordrecht, pp. 3-74. Ver p.8.
[98a] Adaptado de OLDROYD, D. (1986), The
Arch of Knowledge – An Introductory Study of the History of the Philosophy and
Methodology of Science, Methuen, Londres, p. 169. Este autor se
baseia em KOLAKOWSKI, L. (1968), Alienation of Reason: A History of
Positivist Thought, Doubleday, Garden City (original em
polonês:1966).
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