Texto apresentado no capítulo XIV do livro Conceitos de Física Quântica, volume I, escrito
por Osvaldo Pessoa Jr, Livraria da Física.
Uma síntese, feita pelo mesmo autor, pode ser lida na página deste link.
PARTE 2 (leia a PARTE 1)
O
Realismo Científico
Agora
nos concentraremos na interpretação realista de uma teoria física, que inclui
três afirmações básicas: 1) Realismo ontológico: existe uma realidade física que
independe do conhecimento e da percepção humana. 2) Realismo científico:
As proposições de uma teoria têm “valor de verdade”, isto é, são ou verdadeiras
ou falsas, de acordo com a teoria da verdade por correspondência. Assim, uma
teoria física serve para “explicar” fenômenos em termos da realidade física
subjacente, e não apenas para prevê-los. 3) Realidade dos termos teóricos: a teoria pode conter
“termos teóricos” que se referem a entidades físicas que não são diretamente
observadas.
Além
dessas características, costuma-se adicionar mais três afirmações para uma
interpretação realista [99]: 4) Realismo metodológico: atingir a verdade é a meta
principal da ciência. 5) Realismo convergente (K.
Popper): as teorias físicas se aproximam cada vez mais da verdade, sem talvez
nunca atingi-la de maneira completa. 6) Inferência para a melhor
explicação: a melhor explicação para o sucesso prático da
ciência é a suposição de que as teorias científicas são de fato aproximadamente
verdadeiras.
A negação de uma ou outra das
teses expostas acima constitui formas de antirrealismo, no contexto de teorias
científicas. O relativismo nega que existam verdades únicas a
serem descobertas pela ciência (anarquismo epistemológico de P. Feyerabend),
sendo tudo fruto de uma negociação no âmbito das comunidades científicas (T. Kuhn, nova sociologia da ciência). Esta concepção está
por trás da “verdade pragmática” que se
opõe à verdade por correspondência. [100]
Uma
negação do realismo científico é também feita pelo instrumentalismo, que pode ser
“forte” ou “fraco”. O instrumentalismo forte nega que as teorias científicas tenham
valores de verdade, e que elas expliquem uma realidade subjacente aos dados
experimentais. Teorias seriam
meramente esquemas linguísticos que permitem fazer previsões sobre observações,
e que organizam estas de maneira econômica.
Já
um instrumentalismo fraco não
nega que sentenças teóricas (relativas a entidades não observáveis) tenham
valores de verdade, mas nega que isto tenha qualquer importância na ciência
(negando a tese 4). O que seria importante seria a solução de problemas (L. Laudan) ou a adequação empírica (B. van Fraassen).
A
negação da tese 3 recai no descritivismo,
que está associada ao positivismo [100a]. Uma maneira de negar o realismo
convergente (tese 5) é o convencionalismo,
defendido na passagem do século por H. Poincaré, segundo o qual a forma particular da teoria
adotada tem diversos elementos convencionais, já que outras teorias
empiricamente equivalentes são possíveis.
Antirrealismo
na Física Quântica
O antirrealismo
que está associado à Mecânica Quântica envolve
pelo menos três níveis epistemológicos: i) no nível de teoria científica, o instrumentalismo afirma que a Mecânica Quântica não
passa de um instrumento para fazer previsões experimentais; ii) no nível da essência do conhecimento,
o idealismo afirma
que a consciência humana tem um papel importante na determinação do estado do
objeto; iii) no nível do significado ou da origem do conhecimento, o positivismo nega que faça sentido afirmar a
existência de entidades não observáveis ou afirmar proposições não
verificáveis.
Na
discussão sobre realismo científico, tem-se declarado que “o realismo morreu, quem o matou foi a Física Quântica” (A. Fine, 1982). Não examinaremos em detalhes, aqui, a
viabilidade das interpretações realistas da
Mecânica Quântica, mas queremos apenas sublinhar que quem
morreu nos anos 70 não foi o realismo em geral, mas um certo tipo que
chamaremos de realismo classicista,
a tese de que a realidade tem uma estrutura próxima às nossas concepções e
intuições clássicas a respeito do mundo.
Relembremos
três capítulos do antirrealismo na história da física quântica.
(I) O primeiro capítulo está associado à
noção de complementaridade:
“uma realidade independente no sentido físico ordinário não pode ser atribuída
nem aos fenômenos, nem aos agentes da observação” (Bohr, 1928). Defendia-se que
a teoria só trata do observável: uma realidade não observada pode até existir
mas ela não é descritível pela linguagem humana. A posição de Bohr modificou-se
em 1935, e há uma controvérsia sobre o grau de positivismo ou instrumentalismo
da visão de Bohr [101]. Mas mesmo após esta época manteve-se o chamado “relacionismo”, segundo o qual a realidade observada é
fruto da relação entre sujeito e objeto, sendo dependente das
escolhas ou vontade do observador (“voluntarismo” de von Weizsäcker).
(II) O segundo capítulo é uma forma de idealismo subjetivista
associada a uma consciência legisladora.
Ela surge da tese de que o colapso associado a medições só
é causado pela observação humana: “a transformação irreversível no estado do
objeto medido” seria devida à “faculdade de introspecção” ou ao “conhecimento
imanente” que o observador consciente tem de seu próprio estado (London & Bauer, 1939). Filósofos adoram explorar os paradoxos trazidos por esta
posição, como no exemplo do gato de Schrödinger, mas o consenso parece ser que tal
posição radical é desnecessária (apesar de consistente). A interpretação dos estados relativos de Everett resolve problemas semelhantes sem
atribuir um papel legislador à consciência,
mas supondo que esta possa entrar em superposições quânticas.
(III) O
terceiro capítulo do antirrealismo está associado ao trabalho de John S. Bell,
que mostrou que qualquer teoria realista que satisfaça a propriedade de
localidade (salvo algumas exceções) é inconsistente com a Teoria Quântica. Quem
morreu com este resultado não foram as teorias realistas não locais (como a de David Bonm), mas
sim boa parte do realismo local,
uma variedade de realismo classicista que defende que, na realidade, os sinais
sempre se propagam com uma velocidade menor ou igual à da luz.
Alguns
outros exemplos de suposições classicistas que são violadas por alguma interpretação
da Teoria Quântica (além da localidade) são: determinismo, corpuscularismo (a matéria é composta de partículas),
a tese de que o mundo existe em quatro dimensões, de que eventos presentes não afetam o
passado, de que emissões de partículas ocorrem em
instantes bem determinados, etc. Apesar do classicismo estar em
geral associado ao realismo, notamos que o classicismo pode ser em boa parte
adotado por abordagens positivistas, como é o caso da interpretação da
complementaridade de Niels Bohr.
OBS: leia a PARTE 1.
[99]
Ver NIINILUOTO, op. cit. (NOTA 97), P.
467. Ver também MURDOCH (1987), op. cit. (nota 86), pp.
200-7. Para mais sobre o realismo, consultar: LEPLIN, J. (org.) (1984), Scientific
Realism, U. Of California Press, Berkeley; TOULMIN, S. (org.) (1970), Physical
Reality, Harper & Row, Nova Iorque.
[100] Para uma excelente introdução à
problemática da verdade, ver HAACK, S. (1998),
Filosofias das Lógicas, Ed. Unesp,
São Paulo, cap. 7; original: Philosophy of Logics,
Cambridge U. Press, 1978. Em português, ver também: DA
COSTA, N.C.A. (1997), O Conhecimento Científico,
Discurso Editorial, São Paulo, cap. III.
[100a]
Uma distinção clássica entre realismo, descritivismo e instrumentalismo é a de
NAGEL, E. (1961), The Structure of
Science, Harcourt, Nova Iorque, cap 6.
[101]
Dentre os que enfatizaram o realismo de Bohr estão Hooker (1972), Folse (1985),
Honner (1987) e Murdoch (1987). Dentre os que enfatizam seu não realismo,
encontramos Fine (1986), Krips (1987) e Faye (1991). Estas referências, uma
introdução ao problema, e vários artigos sobre Bohr podem ser encontrados em:
FAYE, J. & FOLSE, H.J. (orgs) (1994): Niels Bohr and Contemporary Philosophy,
(Boston Studies in the Philosophy of Science 153), Kluwer, Dordrecht (Holanda).
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